quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

     O TEATRO, O SEU DUPLO E A CULTURA

       "Nunca, quando é a própria vida que nos foge, se falou tanto em civilização e cultura. E existe um estranho  paralelismo entre esse esboroamento generalizado da vida que está na base da desmoralização atual e a preocupação com uma cultura que nunca coincidiu com a vida e que é feita para dirigir a vida"
(...)
      "Se falta enxôfre à nossa vida, quer dizer, se lhe falta uma magia constante, é porque nos apraz contemplar nossos atos e nos perdermos em considerações sobre as formas sonhadas de nossos atos, ao invés de sermos impulsionados por eles"
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      "Nossa idéia petrificada do teatro encontra-se com nossa idéia petrificada de uma cultura sem sombras onde, seja para que lado for que se volte, nosso espírito só encontra o vazio quando na verdade o espaço está cheio.
      Mas o verdadeiro teatro, porque se mexe e porque se serve de instrumentos vivos, continua a agitar sombras nas quais a vida nunca deixou de tremular. O ator que não refaz duas vezes o mesmo gesto, mas que faz gestos, se mexe, sem dúvida brutaliza as formas, mas por trás dessas formas, e através de sua destruição, ele alcança aquilo que sobrevive às formas e produz a continuação delas."
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      "Para o teatro assim como para a cultura, a questão continua a ser a de nomear e dirigir as sombras: e o teatro, que não se fixa na linguagem e nas formas, com isso destrói as falsas sombras mas prepara o caminho para um outro nascimento de sombras à cuja volta agrega-se o verdadeiro espetáculo da vida.
      Romper a linguagem para tocar na vida é fazer ou refazer o teatro; e o importante é não acreditar que esse ato deva ser algo sagrado, isto é, reservado. O importante é crer que todos podem fazê-lo e que para isso é preciso uma preparação.
      Isto leva à rejeição das limitações habituais do homem e dos poderes do homem e a tornar infinitas as fronteiras do que chamamos de realidade.
      É preciso acreditar num sentido da vida renovado pelo teatro onde o homem impavidamente torna-se o senhor daquilo que ainda não existe, e o faz nascer. E tudo que ainda não nasceu pode vir a nascer contanto que não nos contentemos com ser simples órgãos de registros.
      Do mesmo modo, quando pronunciamos a palavra vida deve-se entender que não se trata da vida reconhecida pelo exterior dos fatos, mas dessa espécie de frágil e turbulento núcleo no qual as formas não tocam. E se ainda existe algo de infernal e de verdadeiramente maldito nesses tempos, trata-se desse demorar-se artístico sobre as formas ao invés de ser como os supliciados que se queimam e que fazem signos em suas fogueiras."
(Antonin Artaud)



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